O sentido da vida
Esta semana o blog do Mr. X fez uma indagação que não é nova, mas continua interessante, principalmente quando as idéias e as letras são tratadas com gentileza, como é freqüente neste excelente blog.
O Mr. X pergunta: qual o sentido da vida?
A questão já habitou as mentes mais iluminadas da História e continua a intrigar todos que a ela se dedicam. Não seria este blog, portanto - e muito menos eu -, a respondê-la. A única pista de que dispomos, creio eu, é que existe sim um sentido, inabarcável em sua totalidade, mas com "pedaços" acessíveis à compreensão por meio da intuição, da percepção, da dedução, da reflexão e, principalmente, por meio da Revelação.
Observando a realidade podemos identificar padrões por trás dos fluxos, analogias, fractalidade, simetria e auto-singularidade em todos os objetos existentes no universo, compondo uma Ordem Natural que espelha uma Ordem Divina, ou seja, a Vontade de Deus.
Observando a realidade podemos identificar padrões por trás dos fluxos, analogias, fractalidade, simetria e auto-singularidade em todos os objetos existentes no universo, compondo uma Ordem Natural que espelha uma Ordem Divina, ou seja, a Vontade de Deus.
Nunca entenderemos o sentido total da existência porque ela engloba a soma de todas as possibilidades e esta consiste na Mente Divina, o Logos. No entanto podemos entender um pouquinho deste sentido, seja pelas nossas faculdades cognitivas, seja pela Revelação, e como ele é a representação da Vontade Divina, devemos nos apegar a este sentido compreendido da mesma forma que um náufrago se agarra a um bote salva-vidas.
Além do tema intrigante que a postagem levantou, também me identifiquei com o sentimento de impotência e conseqüente inutilidade do blog. Não tenho competência para dar conselhos a ninguém, mas costumo pensar assim: se o blog servir de semente para uma hipotética salvação de uma única alma, já está valendo; se ninguém leu, mas serviu para organizar o que vou aprendendo, está valendo também. No caso do blog do Mr. X, além de agradável e interessante, é útil e deve continuar a espalhar informação de qualidade e opiniões consistentes. Portanto, mãos à obra! Continue escrevendo!
A todos que se preocupam com o tema que deveriam mesmo se preocupar, indico o livro do Viktor Frankl, Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de concentração, indico o artigo do Olavo de Carvalho, O abandono dos ideais, e abaixo segue um ensaio do Albert Jay Nock, de 1936, traduzido pelo Aristoi.
O Trabalho de Isaías
Numa tarde do último outono, sentei por longas horas com um conhecido europeu, enquanto ele expunha uma doutrina político-econômica que parecia ser sólida como uma noz e na qual eu não conseguia achar defeito algum. Por fim ele me disse, com muita gravidade: "Eu tenho uma missão para com as massas. Sinto que sou chamado para ser ouvido pelo povo. Devotarei o resto de minha vida a espalhar amplamente minha doutrina entre a população. O que você acha?"
Esta é, em qualquer caso, uma pergunta desconfortável, e mais ainda nessas circunstâncias, por que meu conhecido é um homem muito culto, uma das três ou quatro mentes de primeira classe que a Europa produziu em sua geração; e naturalmente eu, sendo um dos incultos, estava disposto a considerar a menor de suas palavras com uma reverência beirando o temor. Ainda assim, eu pensei, nem mesmo a melhor das mentes pode saber tudo, e eu estava certo de que ele não tivera as mesmas oportunidades que eu para observar as massas da humanidade, e que, portanto, eu as conhecia melhor do que ele. Então, juntei coragem para dizer que esta não era sua missão. E que fazia bem em tirar essa idéia da cabeça de uma vez; ele descobriria que as massas não dariam a mínima para sua doutrina, e menos ainda para ele mesmo, já que em tais circunstâncias o favorito do povo é geralmente algum Barrabás. Eu cheguei até mesmo a dizer (ele é judeu) que a sua idéia parecia mostrar que não estava bem inteirado da literatura de seu povo. Ele sorriu da minha pilhéria, e perguntou o que eu queria dizer com ela; então, me referi à história do profeta Isaías.
Me ocorrera então que esta história valia a pena ser recordada, agora quando tantos homens sábios e adivinhos parecem carregar o fardo de uma mensagem para as massas. Dr. Townsend tem uma mensagem, Padre Coughlin outra, Upton Sinclair, Lippmann, Chase e a sociedade para uma economia planificada, Tugwell e os New Dealers, Smith e a liga da Liberdade – a lista não tem fim. Não consigo lembrar de uma época em que tantos endemoninhados diferentes pregavam a Palavra às multidões e lhes diziam o que fazer para serem salvas. Sendo assim, me ocorreu, como eu dizia, que a história de Isaías deve ter algo que firme e concilie o espírito humano, até que esta tirania verborrágica esteja ultrapassada. Parafrasearei a história em linguagem comum, já que suas partes devem ser colhidas de várias fontes; e dado que respeitáveis eruditos acharam apropriado publicar uma versão inteiramente nova da Bíblia no vernáculo americano, me abrigarei atrás deles, se necessário, contra a acusação de estar lidando irreverentemente com as Sagradas Escrituras.
A carreira do profeta teve início no fim do reinado de Ezequias, por volta de 740 a.C. Este reinado foi anormalmente longo, de quase meio século, e indubitavelmente próspero. Foi um daqueles reinados prósperos, entretanto – como o de Marco Aurélio em Roma, ou a administração de Eubulus em Atenas, ou a de Coolidge em Washington – onde no fim a prosperidade subitamente se esfarela e desmorona, com um retumbante estrondo.
No ano da morte de Ezequias, o Senhor incumbiu o profeta de ir avisar o povo do castigo iminente. "Diga-lhes que bando de inúteis eles são." Disse Ele, "Conte-lhes o que está errado, por que e o quê vai acontecer a menos que reformem seus corações e se endireitem. Não use de meias palavras. Deixe claro que esta é irrecorrivelmente a última chance. Mande ver sem piedade, e continue mandando ver. Suponho que Eu talvez deva lhe dizer," Ele continuou, "que não vai adiantar nada. A classe oficial e a intelligentsia vão te desprezar, e as massas sequer te ouvirão. Eles continuarão em seus caminhos até que consigam destruir tudo, e considere-se com sorte se você sair dessa com vida."
Isaías estivera bastante disposto a assumir a missão – na verdade, ele pedira por ela – mas essa perspectiva deu novos contornos à situação. Levantou a evidente questão: Por que, se era assim – se a empreitada era destinada, de início, ao fracasso – havia qualquer sentido em empreendê-la? "Ah," disse o Senhor, "você não entende. Há Remanescentes por lá dos quais você nada sabe. Eles são obscuros, desorganizados, inarticulados, cada um se virando como pode. Eles precisam ser encorajados e reforçados, porque quando tudo tiver ido por água abaixo, serão eles a retornar e construir uma nova sociedade; e entrementes, sua pregação os reassegurará e os manterá de pé. Seu trabalho é cuidar dos Remanescentes, então vá logo e comece a agir."
Claramente, portanto, se a palavra do Senhor vale para alguma coisa – não opinarei sobre isto – os únicos elementos na sociedade judaica dignos de serem incomodados eram os Remanescentes. Isaías parece ter finalmente entendido que este era o caso; que nada se esperasse das massas, mas se houvesse qualquer coisa de substancial a ser feita na Judéia, os Remanescentes seriam os encarregados. Esta é uma idéia muito impressionante e sugestiva; mas antes de explorá-la mais a fundo, precisamos ser perfeitamente claros sobre nossos termos. O que queremos dizer com "as massas", e o que com "os Remanescentes"?
Da maneira em que é comumente utilizada, a palavra massas sugere aglomerações de pessoas pobres e desprivilegiadas, pessoas trabalhadoras, proletários - e não quer dizer nada disso; quer dizer, simplesmente, a maioria. O homem-massa é um que não tem a força de intelecto para apreender os princípios que ser revelam naquilo que conhecemos como vida humana, nem a força de caráter para aderir àqueles princípios firme e estritamente como leis de conduta; e porque tais pessoas perfazem a imensa e esmagadora maioria da humanidade, elas são chamadas coletivamente de as massas. A linha que separa as massas e os Remanescentes é traçada invariavelmente pela qualidade, e não pelas circunstâncias. Os Remanescentes são aqueles que por força do intelecto são capazes de apreender tais princípios, e por força do caráter, capazes, ao menos significativamente, de se apegarem a eles. As massas são aqueles incapazes de ambas as coisas.
O retrato que Isaías nos apresenta das massas judaicas é deveras desfavorável. Em sua perspectiva, o homem-massa – seja ele do topo ou da base da sociedade, rico ou pobre, príncipe ou mendigo – se sai muito mal. Ele aparece não apenas como tolo e irresoluto, mas conseqüentemente velhaco, arrogante, avaro, dissoluto, inescrupuloso e sem princípios. A mulher-massa não se sai melhor, participando de todas as qualidades inconvenientes do homem-masssa, e contribuindo com algumas outras, como vaidade e preguiça, extravagância e fraqueza. A lista de produtos de luxo que ela consumiu é interessante; lembra-se da página feminina de um jornal de Domingo em 1928, ou da exibição em algum de nossos periódicos manifestamente "modernos". Noutro lugar, Isaías relembra as afetações que conhecíamos pelo nome de "andar melindroso" e o "debutante slouch", andar descuidado. Talvez seja bom dar um certo desconto à verve de Isaías, dado o seu fervor profético; afinal, já que sua missão não era converter as massas, e sim revigorar e tranqüilizar os Remanescentes, ele provavelmente sentiu que podia exagerar indiscriminadamente, tanto quanto quisesse – na verdade, isso era esperado dele. Mas mesmo assim, o homem-massa judaico deve ter sido um indivíduo altamente censurável, e a mulher-massa absolutamente odiosa.
Se o espírito moderno, o que quer que ele seja, não é inclinado a tomar a palavra do Senhor pelo que ela é (como parece ser o caso), podemos observar que o testemunho de Isaías sobre o caráter das massas é grandemente corroborado por respeitáveis autoridades gentias. Platão viveu sob a administração de Eubulus, quando Atenas estava no topo da cultura de massa, o jazz-and-paper, e ele fala das massas atenienses com o mesmo fervor de Isaías, chegando mesmo a compará-las a uma manada de vorazes bestas selvagens.
Curiosamente, também, ele aplica a mesma palavra de Isaías, remanescentes, para a porção mais valorosa da sociedade ateniense; "não há senão uns poucos remanescentes," ele diz, daqueles que possuem uma redentora força de intelecto e força de caráter – poucos demais, preciosos como os da Judéia, para serem úteis contra a preponderância ignorante e viciosa das massas.
Mas Isaías era um pregador, e Platão um filósofo; e tendemos a considerar pregadores e filósofos antes como observadores passivos do drama da vida do que como participantes ativos. Portanto, num assunto como este, seus julgamentos podem ser suspeitos de certa intransigência, de serem um tanto ácidos, ou como dizem os franceses, saugrenu. Podemos, portanto, trazer à baila uma outra testemunha, que foi notavelmente um homem de ação, e cujo julgamento não é passível desta suspeita. Marco Aurélio foi soberano do maior dos impérios, e deste posto não apenas tinha o homem-massa romano sob observação, mas o teve em suas mãos vinte e quatro horas por dia, durante dezoito anos. O que ele não sabia sobre o homem-massa não era digno de ser sabido, e o que pensava dele está abundantemente registrado em quase todas as páginas do pequeno livro de apontamentos que escrevia improvisadamente em meio ao cotidiano, para o qual não pretendia nenhum leitor senão ele mesmo.
Esta visão das massas é uma que encontramos prevalecendo largamente entre as autoridades antigas a cujos escritos temos acesso hoje. No século XVIII, entretanto, certos filósofos europeus espalharam a noção de que o homem-massa, em seu estado natural, não é de modo algum o tipo de pessoa que as autoridades de outrora acreditavam ser, mas, pelo contrário, que é um valoroso objeto de interesse. Sua indocilidade é um efeito do ambiente, um efeito pelo qual a "sociedade" é de algum modo responsável. Se apenas seu ambiente lhe permitisse viver de acordo com as próprias luzes, ele indubitavelmente se provaria um bom sujeito; e a melhor maneira de assegurar um ambiente mais favorável para ele seria deixar o próprio se encarregar do ambiente. A Revolução Francesa agiu poderosamente como trampolim para esta idéia, projecionando sua influência em todos os cantos da Europa.
Neste lado do oceano, um continente completamente novo se dispôs a um experimento em larga escala desta teoria. Gastou todos os recursos disponíveis pelos quais as massas pudessem desenvolver uma civilização feita à sua própria imagem e semelhança. Não havia qualquer força tradicional que perturbasse sua preponderância, ou que as pusesse sob o implacável escrutínio dos Remanescentes. Imensa riqueza natural, predomínio inquestionado, isolamento quase total, livre de interferência externa e do temor dela e, por fim, um período de cento e cinqüenta anos – tais são as vantagens que teve o homem-massa, na criação de uma civilização que destruiria a crença dos pregadores e filósofos de outrora de que nada de substancial poderia ser esperado das massas, mas apenas dos Remanescentes.
O sucesso não impressiona. Com base nas evidências até agora apresentadas, é preciso dizer, penso eu, que a concepção do homem massa sobre o que a vida tem a oferecer, e o que ele escolhe pedir da vida, parecem hoje ser basicamente as mesmas que nos tempos de Isaías e de Platão; e também os catastróficos conflitos e convulsões sociais nos quais sua visão de mundo e suas exigências à vida o implicam. Contudo, não pretendo me estender sobre isso, mas somente observar que a importância monstruosamente inflada das massas evidentemente afastou da cabeça do profeta todo pensamento concernente a uma possível missão dos Remanescentes. É obviamente assim que deveria ser, caso os pregadores e filósofos antigos estivessem errados, e caso as últimas esperanças da humanidade estivessem centradas nas massas. Se, por outro lado, acontecer de o Senhor e Isaías e Platão e Marco Aurélio estarem certos na estimativa do valor social relativo das massas e dos Remanescentes, o caso é um tanto diferente. Além disso, dado que, com tudo a seu favor, até agora as massas tenham dado uma demonstração extremamente desencorajadora de si mesmas, parece que a questão em pauta entre estes dois sistemas de opinião pode ser reaberta com proveito.
Mas, sem seguir esta sugestão, eu quero apenas, como disse, sublinhar o fato de que, do jeito que as coisas estão, o trabalho de Isaías parece ser pouco procurado. Todos os que têm uma mensagem hoje em dia estão, como meu venerável amigo europeu, ansiosos por levá-la às massas. Sua primeira, última, e única preocupação é ser aceito e aprovado pelas massas. Seu grande cuidado é dispor sua doutrina de tal forma que possa capturar o interesse e a atenção das massas. Esta atitude para com as massas é tão exclusiva, tão devota, que faz lembrar o monstro troglodita descrito por Platão, e a diligente multidão à entrada de sua caverna, tentando obsequiosamente apaziguá-lo e ganhar seu favor, tentando interpretar seus ruídos inarticulados, tentando descobrir o que o monstro deseja, e avidamente oferecendo a ele toda espécie de coisas que, imaginam, possam agradá-lo.
O problema principal disso tudo é o efeito que tem sobre a própria missão. Requer uma adulteração oportunista da doutrina, que altera profundamente seu caráter e a reduz a um mero placebo. Se, digamos, você é um pregador, deseja atrair uma congregação tão grande quanto possível, o que significa um apelo às massas; e isto, por sua vez, quer dizer adaptar os termos da sua mensagem à ordem de intelecto e caráter própria das massas. Se você é um educador, digamos que no comando de uma faculdade, quer acumular o máximo de alunos possível, e faz os cortes necessários nos requisitos mínimos. Se um escritor, deseja conseguir muitos leitores; se um editor, muitos compradores; se um filósofo, muitos discípulos; se um reformador, muitos convertidos; se um músico, muitos ouvintes; e assim por diante. Mas como podemos observar por todos os lados, na realização destes vários desejos, a mensagem profética é tão pesadamente adulterada com trivialidades em todos os níveis, que seu efeito sobre as massas é simplesmente fortalecê-las em seus pecados. Enquanto isto, os Remanescentes, conhecedores desta adulteração e dos desejos que a motivam, viram suas costas ao profeta e não querem mais saber dele ou de sua mensagem.
Isaías, por outro lado, não trabalhava sob tais estorvos. Ele pregava para as massas somente no sentido em que pregava publicamente. Qualquer um que gostasse podia ouvir; qualquer transeunte podia ser alguém que gostasse. Ele sabia que os Remanescentes ouviriam; e sabendo também que não devia, sob nenhuma circunstância, esperar qualquer coisa das massas, não fazia nenhum apelo específico a elas, não adaptava sua mensagem à medida delas de modo algum, e não ligava a mínima para se prestavam ou não atenção. Como um editor moderno poderia dizer, ele não se preocupava com circulação ou propaganda. Então, com todas as obsessões desse tipo completamente fora do caminho, ele estava apto a fazer o seu melhor, sem medo ou concessões, e respondendo apenas ao seu augusto Chefe.
Se um profeta não for muito inclinado a ganhar dinheiro com sua missão, ou a adquirir com ela uma espécie dúbia de notoriedade, as considerações acima levariam a dizer que servir os Remanescentes parece um bom trabalho. Uma tarefa à qual você pode realmente se dedicar, e fazer o seu melhor sem pensar nos resultados, é um trabalho de verdade; enquanto que servir às massas é, na melhor das hipóteses, um meio trabalho, levando em conta as severas condições que as massas impõem aos seus servidores. Elas te pedem que lhes dê o que querem, insistem nisso, e se recusam a receber qualquer outra coisa; e seguir seus caprichos, suas mudanças irracionais de gosto, seus humores quentes ou frios, é um negócio tedioso – para não mencionar o fato de que seus desejos permanentes têm muito pouco a ver com os recursos proféticos de alguém. Os Remanescentes, por outro lado, querem apenas o seu melhor, seja qual ele for. Dê o seu melhor a eles, e estarão satisfeitos; você não tem mais nada com que se preocupar. O profeta das massas americanas deve almejar conscientemente o mínimo denominador comum do intelecto, do caráter e do gosto entre 120.000.000 de pessoas; e esta é uma tarefa perturbadora. O profeta dos Remanescentes, pelo contrário, está na invejável posição de Papa Haydn no palácio do Príncipe Esterhazy. Tudo o que Haydn tinha que fazer era continuar desencavando as melhores das melhores músicas que ele sabia como criar, sabendo que ela seria entendida e apreciada por aqueles para quem produziu, e não ligando a mínima para o que os outros pensavam dela; e isto é um bom trabalho.
Num certo sentido, entretanto, como eu disse, não é um trabalho recompensador. Se você consegue suportar os caprichos das massas, e ter a sagacidade de estar sempre um passo adiante de suas excentricidades e vacilações, pode conseguir um bom retorno monetário servindo a elas, e um bom retorno num tipo de notoriedade boca-a-boca:
Digito monstrari et dicier, Hic est!
[que nos apontem e digam: é ele!]
[que nos apontem e digam: é ele!]
Todos nós conhecemos inumeráveis políticos, jornalistas, dramaturgos, romancistas e afins, que se deram extremamente bem neste caminho. Cuidar dos Remanescentes, pelo contrário, traz pouca promessa de recompensas do tipo. Um profeta dos Remanescentes não se tornará orgulhoso dos retornos financeiros de seu trabalho, nem é provável que adquira um grande renome por ele. O caso de Isaías foi uma exceção a esta segunda regra, e existem outras, mas não muitas.
Pode-se pensar então que, embora cuidar dos Remanescentes seja sem dúvida um bom trabalho, não é um trabalho particularmente interessante, pois via de regra é tão pobremente recompensado. Tenho minhas dúvidas quanto a isso. Há outras compensações a serem tiradas de um trabalho além de dinheiro e fama, e algumas delas são substanciais o suficiente para se tornarem atrativas. Muitos trabalhos que não pagam bem são ainda assim profundamente interessantes, como, por exemplo, dizem que é o do pesquisador científico; e o trabalho de cuidar dos Remanescentes me parece, depois de muitos anos pesquisando-o a partir de minha tribuna de honra, não ser menos interessante do que qualquer outro trabalho encontrável no mundo.
O que o faz ser assim, penso, é o fato de que em qualquer sociedade os Remanescentes são sempre uma quantidade desconhecida. Você não sabe, e nunca vai saber, mais do que duas coisas sobre ele. Você pode estar certo – dead sure, como diz a nossa expressão – delas, mas não será capaz sequer de fazer uma especulação crível sobre qualquer outra coisa. Você não sabe, e nunca saberá, quem são os Remanescentes, nem o que eles estão fazendo ou farão. Você sabe de duas coisas, e não mais: primeira, que eles existem; segunda, que eles te encontrarão. Exceto por essas duas certezas, trabalhar para os Remanescentes significa trabalhar em meio a uma escuridão incompreensível; e esta, digo eu, é exatamente a condição calculada com mais perfeição para despertar o interesse de qualquer profeta que seja propriamente dotado de imaginação, de insight e da curiosidade intelectual necessárias para uma prática feliz de sua atividade.
O que fascina e desespera o historiador, ao examinar o povo judaico de Isaías, a Atenas de Platão, ou a Roma dos Antoninos, é a esperança de descobrir e revelar o "substratum do bem pensar e do fazer correto" que ele sabe que deve ter existido em algum lugar naquelas sociedades, porque nenhum tipo de vida coletiva pode subsistir sem ele. Ele encontra excitantes indícios aqui e ali em muitos lugares, como na Antologia Grega, no álbum de recortes de Aulus Gellius, nos poemas de Ausonius, e no breve e comovente tributo, Bene merenti, conferido aos desconhecidos ocupantes das tumbas romanas. Mas estes são vagos e fragmentários; eles não o ajudam em sua busca por algum método de medição deste substratum, mas meramente atestam o que ele já sabia a priori – que o substrato realmente existia em algum lugar. Onde estava, o quanto tinha de substancial, qual o seu poder de auto-afirmação e resistência – sobre tudo isso, nada é dito.
De mesma forma, quando o historiador de daqui a dois mil ou duzentos anos examinar o testemunho disponível sobre a qualidade da nossa civilização, e tentar alcançar qualquer tipo de evidência clara e convincente do substratum do bem pensar e do fazer correto, que ele sabe que deve ter existido, vai passar pelo diabo até conseguir encontrá-lo. Quando tiver reunido tudo o que conseguiu, e quando tiver aberto certa margem para falácias, vagueza, e confusão de motivo, tristemente reconhecerá que a sua rede não capturou absolutamente nada. Remanescentes estiveram aqui, construindo um substratum como insetos de coral; isto ele sabe, mas não encontrará nada que o ponha na pista de quem e onde e quantos eles foram, e de que maneira trabalhavam.
Quanto a tudo isso, também, o profeta do presente sabe exatamente tanto e tão pouco quanto o historiador do futuro; e é isto, repito, que me faz seu trabalho parecer tão profundamente interessante. Um dos episódios mais sugestivos recontados na Bíblia é aquele sobre a tentativa de um profeta – a única tentativa do tipo de que se tem registro, que eu saiba – de contar quantos eram os Remanescentes. Elias fugira da perseguição para o deserto, onde o Senhor imediatamente chamou sua atenção e perguntou o que fazia, tão longe de seu trabalho. Ele respondeu que estava fugindo, não por covardia, mas porque todos os Remanescentes haviam sido mortos, com exceção dele mesmo. Ele escapara por apenas um fio de cabelo, e, sendo agora o único Remanescente que havia, se fosse morto a Fé Verdadeira teria fim. O Senhor respondeu que ele não tinha que se preocupar com isso, pois mesmo sem ele a Fé Verdadeira provavelmente conseguiria se arranjar de algum modo, se fosse preciso; "e quanto ao seu cálculo dos Remanescentes," disse Ele, "Eu não me importo em lhe dizer que há sete mil deles lá em Israel, dos quais pelo visto você não tem notícia, mas pode acreditar em Minha palavra de que lá eles estão."
Naquele tempo, a população de Israel provavelmente não podia ser muito maior do que um milhão de pessoas; e um grupo de sete mil Remanescentes em um milhão é uma porcentagem altamente encorajadora para qualquer profeta. Com sete mil ao seu lado, não havia grandes motivos para que Elias se sentisse solitário; e, a propósito, isso é algo que o profeta moderno deve considerar quando tomado de tristeza. Mas o principal é que se Elias o Profeta não conseguiu chegar a um palpite mais aproximado sobre o número dos Remanescentes, do que quando tentou e errou por sete mil, qualquer pessoa que enfrente este problema estará apenas desperdiçando tempo.
A outra certeza com a qual o profeta dos Remanescentes pode sempre contar é a de que os Remanescentes o encontrarão. Ele pode confiar nisso com absoluta segurança. Eles o encontrarão sem que o profeta faça qualquer esforço para tal; de fato, se fizer qualquer esforço, é bem certo que os afastará. Ele não precisa propagandear-se para atraí-los, nem recorrer a qualquer esquema de publicidade para angariar sua atenção.
Se ele é um pregador ou palestrante, por exemplo, pode ser totalmente indiferente a aparições em coquetéis, a ter sua foto publicada nos jornais ou fornecer material autobiográfico para publicação, em nome do "interesse humano". Se um escritor, não precisa se preocupar com aparecer em festas, fazer noites de autógrafo, nem entrar em qualquer espécie de duvidosa confraria de críticos. Tudo isso e muito mais do mesmo tipo se encontra na rotina normal e necessária do profeta das massas; é, e deve ser, parte da grande técnica geral para capturar os ouvidos do homem-massa – ou, como coloca o nosso vigoroso e excelente publicista, o senhor H. L. Mencken, a técnica de "boob-bumping", trombar com tolos. O profeta dos Remanescentes não está preso a esta técnica. Ele pode estar certo de que os Remanescentes encontrarão o caminho sem qualquer auxílio exterior; e não apenas isso, mas se o encontrarem através destes auxílios, como eu disse, é muito provável que fiquem com uma pulga atrás da orelha e dêem no pé.
A certeza de que os Remanescentes o encontrão, entretanto, deixa o profeta no escuro tanto quanto antes, tão desamparado quanto antes na questão de fazer qualquer espécie de estimativa sobre os Remanescentes; pois, como acontece no caso de Elias, ele continua ignorante de quem são os que o acharam, ou de onde estão ou quantos são. Eles não escreveram para informá-lo, assim como fazem os que admiram as vedetes de Hollywood, e nem mesmo o procuram e se apegam a esta pessoa. Eles não são dessa espécie. Eles encaram a mensagem do profeta da mesma forma que motoristas usam as direções inscritas numa placa de beira de estrada – ou seja, dedicando muito pouca atenção à placa, além da grata alegria que sentem por ela estar lá, e com todos os pensamentos voltados para as direções.
Esta atitude impessoal dos Remanescentes aumenta maravilhosamente o interesse do trabalho do profeta imaginativo. De vez em quando, apenas com a freqüência suficiente para manter ativa sua curiosidade intelectual, ele encontrará acidentalmente alguma nítida reflexão de sua própria mensagem, em algum canto insuspeitado. Isso permite que se entretenha, em momentos de lazer, com agradáveis especulações sobre o curso que sua mensagem pode ter tomado até alcançar aquele lugar específico, e sobre o que foi dela depois de chegar lá. O mais interessante destes exemplos seria se fosse possível retraçar o caminho (mas é sempre possível especular), até o ponto em que o próprio receptor não sabe mais onde ou quando ou de quem ele recebeu a mensagem – ou mesmo até o ponto, como acontece algumas vezes, em que ele esqueceu de tê-la recebido em algum lugar, e imagina que a coisa é uma idéia espontânea, surgida de sua própria mente.
Exemplos tais como estes provavelmente não são infreqüentes, pois, mesmo sem presumir que façamos parte dos Remanescentes, todos nós podemos, sem dúvida, lembrar de estarmos repentinamente sob a influência de uma idéia cuja fonte nos é impossível identificar. "Eu só me dei conta depois", como dizemos; ou seja, temos consciência dela somente depois que feriu integralmente nossas mentes, deixando-nos completamente ignorantes de como e quando e por qual agente foi plantada lá, e deixada para que germinasse. Parece altamente provável que a mensagem do profeta muitas vezes toma curso semelhante entre os Remanescentes.
Se, por exemplo, você é um escritor ou um palestrante ou um pregador, oferece uma idéia que está alojada no Unbewußtsein de um membro qualquer dos Remanescentes, e a idéia "pega" fácil lá. Por algum tempo permanece inerte; então começa a afligir e ferir, até que invade a mente consciente da pessoa, e, pode-se dizer, a corrompe. Enquanto isso, ele esqueceu completamente de como chegou à idéia em primeiro lugar, e talvez até mesmo pense que a inventou; e nestas circunstâncias, o mais interessante de tudo é que você nunca sabe o que a pressão daquela idéia pode levá-lo a fazer.
Por estes motivos, me parece que o trabalho de Isaías não é apenas bom, mas extremamente interessante; especialmente na nossa época, quando ninguém se encarrega dele. Se eu fosse jovem e tivesse o objetivo de entrar no trabalho profético, certamente entraria neste ramo do negócio; e portanto não tenho qualquer hesitação em recomendá-lo como carreira para qualquer um que esteja nesta posição. Ela oferece um campo aberto, sem competição; a nossa civilização despreza e rejeita os Remanescentes tão completamente, que qualquer pessoa focada em seu serviço pode muito bem ter a expectativa de dominar todo o negócio.
Mesmo presumindo que exista algum salvamento social a ser experimentado com as massas, mesmo presumindo que o testemunho histórico sobre o seu valor seja um pouco drástico demais, que leva o desespero um pouco longe demais, ainda é necessário perceber, eu penso, que as massas têm profetas demais e de sobra. Mesmo admitindo que nos momentos críticos da história, a esperança da raça humana talvez não esteja exclusivamente centrada nos Remanescentes, é necessário perceber que eles têm valor social suficiente para lhes conferir um direito a alguma medida de consolação e encorajamento proféticos, e que a nossa civilização não lhes concede nenhum. Todas as vozes proféticas são dirigidas às massas, e somente a elas; a voz do púlpito, a voz da educação, a voz dos políticos, da literatura, do teatro, do jornalismo – todas estas são dirigidas exclusivamente às massas, e elas conduzem as massas na direção em que estão indo.
É possível sugerir, portanto, que o talentoso aspirante a profeta pode muito bem voltar-se para outra direção. Sat patriae Priamoque datum – qualquer obrigação do tipo devida ás massas já está paga, com um excesso monstruoso. Contanto que as massas tomem o tabernáculo de Moloque e de Quium, suas imagens, e sigam a estrela de seu deus Buncombe, a elas não faltarão profetas que apontem o caminho que leva à Vida Mais Abundante; e, portanto, os poucos que sentem o impulso profético talvez façam melhor em se aplicar à tarefa de servir os Remanescentes. É um bom trabalho, um trabalho interessante, muito mais interessante do que servir às massas; e além do mais, é o único trabalho em toda a nossa civilização, até onde sei, que oferece um campo virgem.
Onde estão os excelentes?
Novo paradigma: cego guiando cegos |
Tenho pensado bastante no panorama político internacional, que parece caminhar para desastres econômicos no Ocidente e para o surgimento de novas ditaduras no Oriente Médio, isso sem falar de uma iminente grande guerra. O compromisso de manter esse blog atualizado sempre que possível contribuiu para ordenar as idéias e complementá-las com mais pesquisas e estudos, já que não posso desrespeitar meus leitores, que além de leiais, mostram-se muito qualificados nos comentários e e-mails.
Em todo o mundo vejo a estabilidade desaparecendo do dia-a-dia das pessoas para dar lugar a hábitos, costumes e crenças sem nenhuma relação com nossa cultura e que, pior ainda, nada trazem de benefícios reais. Ouso dizer que nunca, na história humana, o mundo foi liderado por seres tão desprezíveis, mesquinhos, sem caráter e sem inteligência. O que tenho notado com muita freqüência é que por trás das atitudes políticas irresponsáveis e desonestas está uma profunda decadência intelectual e moral não apenas das lideranças, mas também das populações e das instituições representativas.
As causas desta marcha da vaca (ou ovelha?) para o brejo me parecem bem evidentes: as ideologias modernas minaram a capacidade intelectual da maioria das pessoas expostas a seus venenos e armadilhas cognitivas. Mesmo entre os melhores noto certa impotência mental, certo desânimo, que em alguns chega ao niilismo estúpido e irresponsável, feito ovelhas caminhando rumo ao precipício (ou brejo?) - mééééééé.
Por essas e outras, eu pergunto: Onde estão os excelentes?
...
Um texto sábio. Leia.
O Homem-Massa
Numa boa ordenação das coisas públicas, a massa é o que não actua por si mesma. Tal é a sua missão. Veio ao mundo para ser dirigida, influída, representada, organizada – até para deixar de ser massa, ou, pelo menos, aspirar a isso. Mas não veio ao mundo para fazer tudo isso por si. Necessita referir a sua vida à instância superior, constituída pelas minorias excelentes. Discuta-se quanto se queira quem são os homens excelentes; mas que sem eles – sejam uns ou outros – a humanidade não existiria no que tem de mais essencial, é coisa sobre a qual convém que não haja dúvida alguma, embora leve a Europa todo um século a meter a cabeça debaixo da asa, ao modo dos estrúcios para ver se consegue não ver tão radiante evidência. Porque não se trata de uma opinião fundada em factos mais ou menos frequentes e prováveis, mas numa lei da " física " social, muito mais incomovível que as leis da física de Newton. No dia em que volte a imperar na Europa uma autêntica filosofia – única coisa que pode salvá-la –, compreender-se-á que o homem é, tenha ou não vontade disso, um ser constitutivamente forçado a procurar uma instância superior. Se consegue por si mesmo encontrá-la, é que é um homem excelente; senão, é que é um homem-massa e necessita recebê-la daquele.
Ortega y Gasset - A Rebelião das Massas
Um pouco de música
Hoje fui atacado pela preguiça e estou há pelo menos duas horas ouvindo música sem fazer absolutamente nada. Para alguém como eu, isso é uma vitória, não contra o "mundo opressor", mas contra minha ansiedade. Como já percebi que alguns que seguem este blog gostam da boa música, resolvi compartilhar com vocês o que me tomou as últimas duas horas.
O austríaco Franz Schubert foi talvez o maior compositor do seu tempo e esta sinfonia é uma das peças mais executadas em grandes apresentações e, principalmente, uma das mais utilizadas no cinema. É chamada A Inacabada porque tem apenas dois movimentos, mas não se sabe se algum dia o autor pensou em terminá-la. Sabe-se apenas que ela foi dedicada à Sociedade Musical de Graz, uma pequena cidade austríaca, em 1822, e foi entregue a seu amigo, então representante da entidade. Esta sinfonia, que alguns numeram como 7ª , outros como 8ª e outros ainda como 9ª , foi uma das primeiras grandes músicas a me aceitar como fã e me acompanha desde a adolescência. Franz Schubert morreu aos 31 anos e deixou mais de 500 obras dignas de um mestre. Minha identificação com Schubert vai além da admiração que tenho por sua música: ele foi um durango e passou maior parte do tempo sem um puto no bolso... como eu!
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